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Três ondas nos estudos sobre a relação entre famílias e jovens homossexuais


retirado do perfil do Twitter de Michael LaSala

Durante meu curso em Haia entre outubro de 2017 e junho de 2018, estudei a questão do apoio a famílias no processo de “Coming Out” ou “saída do armário” de jovens homossexuais. Um autor especialmente me encantou: Michael LaSala. Estudei o livro dele Coming Out, Coming home (que será assunto de um outro post) e um artigo chamado “Out of the darkness: three waves of Family research and the emergence of family therapy for lesbian and Gay People”. É desse artigo que quero falar hoje.

Em minha prática profissional, seja na clínica ou em intervenções educativas é muito comum que as pessoas perguntem sobre as causas da homossexualidade. Não acho que é uma pergunta que se justifica por alguns pontos:

  • Se eu entendo que a orientação sexual é da ordem do desejo e que discutir causas do desejo é atribuir uma racionalidade ou linearidade ao que não tem, é inviável pensar em uma causa descritível para um desejo.
  • Não existem pesquisas que se debruçam sobre as causas a heterossexualidade e essa ausência revela que o desejo (seja ele qual for) não é possível de ser capturado e descrito em relações de causa e efeito.
  • A pergunta da causa pode estar investida de uma patologização: entender uma causa para pensar um tratamento. Se eu parto do pressuposto que a homossexualidade é uma das formas possíveis de viver o desejo, não se justifica pensar em tratamento para esse desejo. Entendo sim que é possível acolher e acompanhar pessoas que estejam enfrentando dores e dificuldades com a vivência da homossexualidade, já que vivemos num mundo em que apenas a vivência da heterossexualidade é considerada legítima e então, as situações de homofobia são cotidianas e geram sofrimento. Isso para mim é o trabalho da psicologia na clínica com homossexuais: acolher o sofrimento gerado por viver um desejo que é discriminado na sociedade atual.

Porém, isso nem sempre foi assim e durante muito tempo houveram tentativas de se descrever uma causa para a homossexualidade e as famílias foram culpabilizadas. E o resquício dessas pesquisas e discursos ainda impacta enormemente as famílias de jovens que saem do armário. Foram essas formas de compreender a relação entre as famílias e os jovens homossexuais que Michael LaSala abordou em seu artigo. Ele descreve 3 ondas:

Photo by Fancycrave on Unsplash

  • Primeira onda: Culpando a Família

Na primeira onda descrita pelo autor, as teorias descreviam as identidades gays e lésbicas como uma doença causada por uma disfunção familiar. Essa onda foi hegemônica nos anos 1960/70 e as teorias e pesquisas posteriores mostraram que ela não era correta. Porém, ela ainda é forte no imaginário social e gera dores e dúvidas entre as famílias atuais.

Para muitos psicólogos que produziram naquela época, a homossexualidade (masculina) era causada por uma mãe superprotetora e um pai ausente. Algumas pesquisas posteriores mostraram como o sistema funcionava com a mãe se aproximando mais do filho como uma medida compensatória, quando o pai se afastava ao perceber os filhos manifestando algum traço de feminilidade no comportamento. Assim, a mãe superprotetora e o pai ausente não seriam a causa de um filho homossexual, mas possivelmente o resultado da dinâmica familiar com um filho gay.

A despeito de já termos a clareza de que a homossexualidade não é uma doença e não precisa de tratamento, muitas famílias ainda procuram terapias de reversão ou de cura, muitas vezes influenciadas por uma culpa gerada por esse discurso de que a homossexualidade foi causada por uma disfunção familiar.

  • Segunda Onda: Evitando a Família

Nessa segunda onda, que o autor demarca como predominante entre 1970/1990, a família era vista como um obstáculo para a felicidade de gays e lésbicas. Então, evitar a família original e construir “famílias por escolha ou famílias de consideração” era a forma de gays e lésbicas terem redes de apoio e vínculos afetivos para darem suporte e acolhimento em seus cotidianos.  A ideia era que a rede de amigos ofereceria o suporte social necessário para vida e que o rompimento com a família seria a melhor forma de evitar o stress do preconceito e rejeição.

Infelizmente, ainda escutamos muitas histórias em que o rompimento com as famílias foi sim uma estratégia de preservação da saúde mental e que os amigos têm sido a rede de suporte mais efetiva de jovens e adultos homossexuais. Entretanto, o que o autor aborda no artigo é que mesmo a “família por escolha ou consideração” sendo muito presente, a falta e a ausência da família de origem continua sendo sentida e sofrida.

É interessante perceber como os casais heterossexuais recebem apoio afetivo e financeiro em suas relações e isso é importante para o início da relação (eu mesma até hoje ainda tenho presentes que ganhei de casamento e que nunca usei. Isso é um apoio financeiro para o início de uma relação que nem sempre é visibilizado). Com casais gays, nem sempre é a mesma coisa. O início das relações pode ser marcado por ainda mais dificuldades…

Photo by Kevin Delvecchio on Unsplash

  • Terceira onda: A família como um recurso

Desde o início dos anos 2000, terapeutas que trabalham e pesquisam gays e lésbicas tem percebido que a família pode ser um recurso para o bem-estar. Fato já consolidado quando o assunto são jovens heterossexuais, a importância do acolhimento da família para a vivência das primeiras experiências afetivas e sexuais é demonstrada em diversos estudos.

Atualmente, jovens tem saído do armário e assumido a identidade homossexual cada vez mais cedo e as famílias nem sempre tem sabido como lidar. Os jovens têm se assumido ainda sendo dependentes das famílias financeiramente e emocionalmente. Eles buscam a autonomia de decisão, mas ainda não tem independência financeira. Isso coloca novas questões nas relações familiares.

Jovens que são apoiados pelas famílias são menos vulneráveis a adoecimento psíquico, a abuso de substâncias e a experiências sexuais desprotegidas. Em tempos de novo crescimento dos índices de contaminação por HIV entre jovens, as famílias podem ser recursos protetivos para os jovens, desde que consigam lidar com suas próprias questões.

E lidar com essas questões inclui lidar com a sensação de culpa gerada pelos resquícios da primeira onda no imaginário e elaborar o luto da imagem do filho ou filha heterossexual que eles haviam construído. Também é importante abordarem a própria ansiedade sobre o bem-estar e o futuro dos filhos, buscando conhecer mais histórias de pessoas homossexuais, famílias homossexuais e ampliar o conhecimento sobre esse universo.

Por outro lado, os filhos que saem do armário para suas famílias estão procurando suporte, acolhimento e o amor incondicional de seus familiares.

A tarefa de um profissional da psicologia nesse processo é auxiliar as famílias a se reconectarem com suas necessidades de amor e aceitação que muitas vezes são escondidas pela distância e conflito, permitindo a expressão de medos e esperanças, criando um clima de diálogo autêntico.